INUNDAÇÕES NA CIDADE DE SÃO PAULO, UMA CONSTRUÇÃO SOCIAL[1]
Fábio Alexandre Santos[2]
São Paulo enfrentou e enfrenta todos os problemas de uma cidade que cresceu desordenadamente. Em 1872, tinha pouco mais de 31 mil habitantes; em 1920, sua população já era de 580 mil. Nessa época, emergiram problemas urbanos que são historicamente construídos pela relação do homem com a natureza. Tais questões impactaram a história da cidade e a vida de sua população; e ainda continuam impactando, especialmente daqueles paulistanos que subsistem abaixo das condições mínimas de vida. Um destes problemas foi a construção social das inundações (SEABRA, 1987 e 1988). Aziz Ab’Sáber já demonstrou a complexidade da rede de drenagem da região sobre a qual a cidade de São Paulo teve origem e se desenvolveu, evidenciando a importância dos cursos d’água e em especial das várzeas, que conferiram um caráter de isolamento a bairros e núcleos formadores de bairros, especialmente nas regiões além-Tietê e além-Pinheiros (AB’SÁBER, 2007, p. 159-161).
Se por um lado as várzeas foram responsáveis por uma certa dificuldade
na formação orgânica do núcleo urbano, antes, porém, elas cumpriram funções
importantes, num sítio geográfico permeado por cursos d’água. Estas terras,
desde as primeiras ocupações da região, recebiam as águas dos rios e córregos
paulistanos que “transbordavam e ocupavam as várzeas” (JORGE, 2007, p. 178).
O fluxo e refluxo das águas nas várzeas era uma característica natural
das cheias, através da qual as águas extravasam o chamado leito menor e atingem
o leito maior. A transformação da cheia em enchente ou inundação encontra um de
seus fatores geradores no momento em que a interferência humana passa a agir
sobre estas áreas, ocupando-as, impermeabilizando-as, e consequentemente
impondo-lhe limites antes inexistentes. No caso das águas, ao encontrar limites
impostos pelos homens, elas acabam por gerar prejuízos materiais e humanos.
Trata-se de um fenômeno socialmente construído.[*1]
As inundações
Uma das primeiras subidas das águas que pode ser tomada como inundação
em São Paulo (ou como o início do processo de sua construção social), ocorreu
em 1º de janeiro de 1850, após uma “tromba d’água motivando o arrombamento dos
açudes e a inundação do vale do Anhangabaú” (TAUNAY, 2004, p. 281), na região
central da cidade. “Fez transbordarem os tanques do Reúno e do Bexiga, atirou
pra fora do leito o romântico Anhangabaú, destruiu doze casas, botou abaixo a
ponte da Abdicação, situada ali pelas alturas da Praça do Correio, e ocasionou
três mortes, além de muitos prejuízos públicos e particulares” (SCHMIDIT, 2003,
p. 131). A inundação motivou um abaixo-assinado enviado à Assembleia Provincial
pedindo providências, no qual os signatários narraram possíveis causas do
problema, relacionaram suas perdas e declararam ter “lisongeiras esperanças de
que sobrias medidas tomadas por esta assemblea tornarão impossivel a repetição
de tão grande calamidade”.
A história da cidade, contudo, revelaria situações adversas como esta
com mais frequência do que esperavam os signatários do abaixo-assinado;
e, na medida em que a cidade se transformaria urbanisticamente, o
problema das inundações se consolidaria, como parte deste mesmo processo.
Denise Sant’Anna (2007) mostra que, na segunda metade do século XIX, o
tema das enchentes passou a ter destaque nas discussões da Câmara e nos jornais
da cidade. O debate incentivou o empreendimento de serviços e obras públicas
diretamente relacionadas à necessidade de se evitar o problema, especialmente
quando a riqueza advinda da consolidação do complexo cafeeiro começou a se
materializar na capital, sobretudo com a chegada das linhas férreas. [*2]
Nos debates, além da relação com os prejuízos de ordem material e
humana, as “cheias” ou “inundações” também apareciam relacionadas à
problemática das águas estagnadas, tidas como as responsáveis pela transmissão de
doenças, através dos miasmas. Isso aconteceria principalmente nos períodos de
chuvas, quando o problema das inundações se intensificava, formando brejos e
atoleiros. Por isso as obras previam a melhoria do “fluxo d’água” dos rios para
evitar sua estagnação.
Numa dessas obras, realizada em 1848, um canal reto foi aberto paralelo
ao curso original do Rio Tamanduateí, com mais profundidade que este,
deslocando sua margem para leste e, ainda suprimindo as curvas naturais
existentes em seu curso (as Sete Voltas). Em 1875, o Tamanduateí passou por
outra obra na área central da cidade, na área que compreendia a antiga Sete
Voltas, com a construção da Ilha dos Amores e de um passeio público junto às
águas do rio com jardins e quiosques,[*3]
que incorporava a região
ao conjunto da cidade. Contudo, as enchentes persistiam. Tanto assim que, em
1879, por ocasião de uma enchente na região central, a Ilha dos Amores foi
avariada, com prejuízos aos cofres públicos. Naquela inundação, as águas também
atingiram as várzeas do Rio Tietê, a Rua 25 de Março, e a passagem do bonde
sobre o aterrado do Brás. Algumas casas nas imediações do Gasômetro
“ficaram inundadas” e em outros pontos por ali “algumas taipas e paredes”
desmoronaram, segundo o jornal A Província de S. Paulo.
As inundações foram se sucedendo na mesma medida em que as mudanças
atingiam a localidade, impactando com mais ferocidade a vida da população e,
claro, demandando também mais reações dos poderes públicos. Assim foi
constituída a Comissão de Saneamento das Várzeas, criada em 1890, sob o comando
dos engenheiros Theodoro Fernandes Sampaio e Antonio Francisco de Paula Souza.
A Comissão elaborou estudos para a retificação dos rios Tietê e Tamanduateí. Em
1897, a comissão teve sua denominação alterada para Comissão de
Saneamento do Estado, sob o comando do engenheiro João Pereira Ferraz.
Entretanto, devido à falta de recursos, as obras de retificação do Tietê não
foram levadas adiante. No ano seguinte a comissão foi extinta e somente as
obras sobre o Tamanduateí prosseguiram (foram iniciadas em 1896 e concluídas em
1914). O Tamanduateí foi retificado na altura do Centro; a Ilha dos Amores foi
extinta; e a área considerada como várzea foi drenada (CAMPOS, 2010, p. 208 e
segs.). Já as obras de retificação do Rio Tietê só teriam início décadas
mais tarde, no final da década de 1930.
As inundações se tornaram cada vez comuns, especialmente com os verões
chuvosos (caraterísticos da região). Os jornais trazem informações que revelam
como os impactos dessas enchentes atingiam a população da cidade. Em 1905, numa
inundação que fez subir as águas dos rios Tietê e Tamanduateí, o Diário
Popular descreve o susto da população diante dos estragos em prédios e
muros, com prejuízos em casebres à beira do Tietê; casas invadidas pela água no
Brás; ruas intransitáveis; interrupção de tráfego de bondes. O jornal também
trazia reclamações da população, citando o calçamento baixo e a ausência de
escoamento que facilitavam a estagnação e a invasão das águas nas casas nas
ruas Cruz Branca, Sampaio Moreira, Flórida e parte da Monsenhor de Andrade.
Já numa enchente de 1912, alguns elementos evidenciam como os moradores
de certas áreas da cidade se relacionavam com os cursos d’água e suas várzeas;
ou, no limite, como gradativamente começavam a deixar de considerá-las como
parte de seu ambiente “natural”. Isso acontecia à medida que não mais se
relacionavam com estes elementos como faziam antes. Não viam mais os cursos
d’água como locais para banhos, fonte de alimentos, meios de transporte ou
locais para lavagem de roupas. Segundo matéria do jornal O Estado de
São Paulo(1912a), as
águas sairam do seu leito [do rio
Tamanduateí], invadindo os terrenos e quintaes das casas
próximas. (...) Os passeios estão debaixo d’agua e as casas ameaçadas
de serem invadidas. Ascasas da varzea estão no meio de um
grande lago, dando-nos a idéa de uma nova Veneza. (...) Muitas dessas casas
fóramtomadas pelas aguas que invadiram os quartos e as salas,estragando
tudo e tirando para fóra moveis e outros utensilios. Os moradores
desse local, vêm-se numa situa (sic) critica, lutando com serios embaraços para
poderem sair das suas casas. Pelo meio das ruas, navegam canoas e outras
embarcações, apinhadas de gente. (...) As fabricas Penteado,
installadas na varzea, na parte que fica do outro lado da rua Glicerio,
tambem foram invadidas pela corrente d’agua que prejudicou
grandemente o serviço.
Quem eram os invasores? Quem invadiu o quê? Ao que parece, a ocupação
transformou o ocupante em vítima do “invasor”. A relação do homem com o meio, a
“natureza” que o rodeava, se refazia a cada chuva que subia as águas dos rios.
Dez anos depois, em 1922, o Estado de São Paulo tornara-se, segundo o
censo de 1920, o maior produtor industrial do país, respondendo por 32% da
produção nacional, mesmo que sua produção ainda fosse dependente do setor
agroexportador e da importação de bens de capital. Estimulada pelo avanço
industrial, a cidade registrava em torno de 580 mil habitantes no início da
década. Continuava a atrair trabalhadores. A demanda por infraestrutura e
serviços aumentava; prédios públicos eram edificados; ruas e avenidas eram
abertas; e, é claro, as enchentes aconteciam.
Nesta década, várias inundações marcaram a história da cidade. Em 1922,
por exemplo, diferentes regiões da cidade foram atingidas pelas águas, como os
bairros da Vila Maria, Vila Guilherme, parte do Coroa, Bom Retiro, as “partes
baixas” da Casa Verde, da Lapa, da Freguesia do Ó e do Limão – várzeas ou áreas
sujeitas às cheias, que estavam sendo ocupadas.
O Estado de S. Paulo (1922) registrou prejuízos como a
interrupção dos serviços de correio; a intervenção da polícia sobre o trabalho
de barqueiros (que cobravam para realizarem salvamentos); trabalhadores
“afflictos” que buscavam ajuda na delegacia, já que as águas “invadiram” os
sítios e chácaras em que trabalhavam, deixando-os sem trabalho; e o abandono de
animais em algumas regiões. Neste ano, várias pontes da cidade, então
edificadas para atender à sua expansão urbana, converteram-se num problema,
pois obstruíram o escoamento ao reter resíduos em suas estruturas (aguapés,
animais mortos, restos de árvores, barcos velhos etc.), contribuindo com a
retenção das águas. O fato obrigou a prefeitura a deslocar trabalhadores para
várias pontes a fim de desobstruí-las.
Mas a enchente de 1929, com o envolvimento da Light and Power [*4]
é a que mais simboliza
a construção social do fenômeno aqui em reflexão. Após três dias de chuvas,
várias inundações ocorreram em diferentes regiões da cidade, entre 6 e 8 de fevereiro.
Nos três dias seguintes as chuvas diminuíram, mas retomaram com força nos dias
12 e 13. No dia 14 de fevereiro a chuva diminuiu novamente, e os dias de 15 a
20 foram de estiagem. Mas foi no dia 18 de fevereiro que veio a maior
inundação, cinco dias após as últimas chuvas nas cabeceiras dos dois principais
rios da região.
Este fato, segundo Odete Carvalho de L. Seabra, pode ser explicado da
seguinte forma: desde o dia 14, como mostram as inúmeras matérias dos
jornais daqueles dias, a Light abrira as comportas dos reservatórios da região
de Santo Amaro; ao passo que a barragem da usina de Santana de Paranaíba, à
jusante, com capacidade limitada de escoamento, contribuiu para a inundação.
Isso sem considerar “a possibilidade que parece bastante real, de terem sido
fechadas” suas comportas (SEABRA, 1987, p. 176-193).[*5]
Os impactos da inundação de 1929 foram noticiados e debatidos durante
muito tempo pelos jornais, que se referiam aos seus efeitos nas diferentes
regiões da cidade e imediações dos rios Tamanduateí, Tietê, Pinheiros,
Ipiranga, além de outros cursos d’água menores. Prejuízos materiais (públicos e
privados), mortes, interrupção de tráfego (inclusive de bondes), ruas
intransitáveis, desabamento de casas, população flagelada, êxodo de moradores,
destruição de pontes, “invasão” das águas nas residências e clubes
(interrompendo práticas esportivas) estão entre os impactos registrados em
1929.
É inegável que a inundação de 1929, em toda sua complexidade, foi uma
das mais importantes da história da cidade, tanto em função da sua abrangência,
de seus impactos e de suas consequências sociais e econômicas, quanto do agente
econômico envolvido na sua ocorrência. Entretanto, do ponto de vista da
reflexão aqui proposta, será que esta enchente teria ocorrido se antes não
tivesse sido instaurado um processo de construção social das enchentes,
tornando-as um fenômeno do próprio processo de urbanização e, portanto, sendo
capaz de justificá-las?
Essa reflexão adquire relevo, especialmente, quando se considera que à
Light cabia o direito de declarar de utilidade pública as terras “atualmente
alagadiças” ou “sujeitas a inundações”, desde que necessárias à sua
operacionalização e às obras que fora autorizada a fazer, segundo a Lei de
Concessão de 1927. Esta lei autorizou a empresa a utilizar as águas excedentes
do rio Tietê para aumentar a geração de energia na sua usina em Cubatão. Isso
seria feito por meio da inversão do curso e pela canalização do rio Pinheiros,
cujas margens e adjacências seriam saneadas.
Na ocorrência de 1929, o interesse econômico pela terra urbana fez a
inundação servir oportunamente aos propósitos da Light, que subsequentemente
pode incorporar as faixas de terra de seu interesse, e executar as obras
autorizadas. Ou seja, de qualquer modo, na construção social das inundações
também entram interesses econômicos.
Considerações finais
A subida das águas no ribeirão do Anhangabaú, em meados do século XIX,
parece ter iniciado um processo que ganhou ímpeto a partir do último quartel
deste século: as inundações na cidade de São Paulo. Tal fenômeno encontra
correspondência com a ocupação do solo e a transformação da cidade, em razão da
consolidação do complexo econômico cafeeiro que atraía pessoas e capital. Se
por um lado, esta atração fazia aumentar largamente as atividades econômicas e
a população, por outro, também gerava problemas e novas demandas, numa cidade
em expansão. Entre os problemas, estavam as enchentes que traziam prejuízos
(públicos e privados), “invadiam” casas e fábricas, e impunham mortes.
Durante os verões marcadamente chuvosos, as inundações foram, assim,
sendo gradativamente incorporadas ao calendário da cidade. Ao longo dos anos,
passaram a compor parte do próprio processo de urbanização de São Paulo, talvez
devido à falta de planejamento dos poderes públicos, como indicou Saturnino de
Brito na década de 1920. Entretanto, algumas vozes tentaram apontar
possibilidades de controle das inundações, como a Comissão de Saneamento das
Várzeas, na década de 1890; ou mesmo a Comissão de Melhoramentos do Rio Tietê,
em 1926, sob a direção do próprio Saturnino de Brito (SÃO PAULO – Estado,
1926), que propôs soluções para inundações, com possibilidades de uso dos rios
para navegação, destinação de resíduos, geração de energia etc.
Inúmeros foram os casos de enchentes registradas de meados do século XIX
até a enchente de 1929. Assim indicam o relatório da Comissão de Melhoramentos
do Rio Tietê, de 1950, que registra o nível de subida das águas no Rio Tietê
(na Ponte Grande) de 1893 a 1949; os jornais do período; e a historiografia
sobre o tema. Porém, a enchente de 1929 – retratada por grande parte da
historiografia como uma das maiores da história da cidade – talvez exemplifique
com mais nitidez a construção social deste fenômeno, pois, em sua amplitude e
complexidade, abarca tanto questões naturais quanto sociais (interesses
privados e políticos) que se sobrepuseram aos interesses coletivos.
Referências
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fevereiro de 1929 (b); 20 de fevereiro de 1929 (c); 24 de fevereiro de 1929
(d); 20 de dezembro de 1929 (e); e 24 de dezembro de 1929 (f).
[1]
Artigo retirado
da Revista Histórica, revista on line do Arquivo Público do Estado de São
Paulo.
[2] É graduado em
Ciências Sociais pela Unesp-Araraquara (1996), com Mestrado em História
Econômica (2000) e Doutorado em Economia Aplicada-História Econômica (2006),
ambos pelo Instituto de Economia da Unicamp. É Professor Adjunto da Escola
Paulista de Política, Economia e Negócios (EPPEN), da Universidade Federal de
São Paulo (Unifesp), campus Osasco. Pesquisa temas ligados à História Econômica
e História Ambiental, com especial atenção à temática das águas e das enchentes
na cidade de São Paulo. Publicou as seguintes obras: Domando Águas. Salubridade
e ocupação do espaço na cidade de São Paulo, 1875-1930, pela Alameda/ Fapesp; e
Rio Claro: uma cidade em transformação, 1850-1906, pela Annablume/
Fapesp. (Fonte: Currículo Lattes)
SÃO PAULO E SEUS RIOS EM FINAIS DO SÉCULO XIX: DOS
PLANOS À CRIAÇÃO DA COMISSÃO DE SANEAMENTO DAS VÁRZEAS[1]
Cristina de Campos[2]
O século XIX foi marcado por várias turbulências no cenário político
brasileiro: a Independência, a Abolição, a República e a ascenção de novos
grupos sociais ao poder. A cidade de São Paulo absorveu os impactos de tais
acontecimentos. Além disso, a província sentia os efeitos da boa receptividade
do café nos mercados internacionais. A rubiácea, cultivada em terras paulistas
já na década de 1830, conquistava o Oeste a partir do que é hoje a cidade de
Campinas. E a capital da província, por sua vez, necessitava se metamorfosear
para incorporar as novas funções impostas pela economia cafeeira em ascensão.
Nos periódicos que circulavam entre as décadas de 1850 e 1860,
evidenciava-se um problema em particular, que incomodava os paulistanos: as
enchentes dos rios Tamanduateí e Tietê. A cidade crescia e sua população
começava a ocupar as várzeas. Estas, por sua vez, eram um espaço de convívio
social das camadas mais baixas da população, como homens livres pobres,
ex-escravos e escravos mesmo. Pela sua promiscuidade, eram identificadas como
locais impróprios, e condenadas também por constituírem ameaça constante à
saúde aos habitantes da cidade (SANTOS, 1998, p. 195).
Assim, no século XIX, várias propostas são apresentadas para resolver o
que era considerado pelos paulistanos como um problema de salubridade urbana e
social. Neste artigo, analiso as propostas e planos elaborados ao longo do século
XIX para as enchentes na cidade de São Paulo. Demarco como balizas algumas
propostas apresentadas no início do século, passando pela do engenheiro Luiz
Bianchi Bertoldi, e culminando com o debate sobre o saneamento da Várzea do
Carmo na década de 1890.
As propostas para esta várzea geraram um intenso debate e novas
propostas (como a do coronel Joaquim de Sousa Mursa). É então que o governo
estadual intervém e comissiona profissionais para formularem resposta
definitiva ao assunto. A partir da Comissão de Saneamento das Várzeas da
Capital, as enchentes seriam trabalhadas pela esfera do governo estadual, com a
designação de equipes especializadas e voltadas para o controle do problema.
Finalizo minha análise com esta Comissão, por acreditar que, a partir da mesma,
inaugura-se outra etapa das intervenções nos rios e várzeas da cidade de São
Paulo.[*1]
Desta forma, espero produzir reflexão sobre as transformações dos
espaços das áreas de várzea e de rios, realizadas na cidade de São Paulo nas
décadas finais do século XIX. O conhecimento técnico veiculado à época indicava
que a realização de mudanças e alterações substanciais da paisagem natural
traria um ambiente mais salubre para a cidade. Esta era a visão predominante
entre os profissionais que lidavam diretamente com as questões ligadas ao
urbano, como médicos, engenheiros e bacharéis em direito.
As primeiras propostas e estudos para as enchentes – 1824-1887
Um artigo de OLIVEIRA e FIGUEIRÔA (1984) traz uma relação das principais
propostas veiculadas para o problema das águas fluviais paulistanas. Os autores
destacam que em 1824, o Conselho Geral da Província de São Paulo emitiu ordem
para encanar (colocar em tubos) o rio Tamanduateí. A obra, de interesse
público, visava ainda a construção de canais e açudes. Depois, somente a partir
da década de 1850 é que debates similares começam a aparecer nas mensagens
oficiais (OLIVEIRA E FIGUEIRÔA, 1984).
Em 1852, o Presidente da Província, José Thomaz Nabuco d´Araújo, relata
a realização de melhoramentos, como a construção de vala para esgotamento das
águas pluviais na várzea do Tamanduateí. A vala, salienta o presidente, não
trouxe os melhoramentos esperados; pelo contrário, transformou-se em foco de
pestilência. Além disso, impedia a população de atingir o rio, que era uma
importante via de circulação à época (OLIVEIRA E FIGUEIRÔA, 1984).
Os autores destacam que, em 1855, o Presidente da Província José Antonio
Saraiva apresentava proposta em seu relatório para total dessecamento da várzea
do Tamanduateí. A proposta, mais ligada à questão do melhoramento da mobilidade
dos citadinos, pretendia dar largura e profundidade necessárias para o trânsito
de barcos pelo Tamanduateí (OLIVEIRA E FIGUEIRÔA, 1984).
Na década de 1860, a cidade assiste a inauguração de sua primeira
ferrovia. O progresso urgia e transformações nas estruturas da antiga cidade
colonial eram necessárias.
Mas foi só no governo do Presidente da Província João Theodoro Xavier
(1872-1875), que se montou um plano de melhoramentos para a cidade, tendo como
objetivo atender a três pontos em específico: higiene, estética e circulação
(LEME, 1991). Xavier fomentou uma transformação substancial da paisagem, com a
demolição de antigos casarões de taipa, a abertura de ruas largas e a
construção de drenagens e aterros na Várzea do Carmo. Para alguns autores, como
OSEKI (1992), João Theodoro promoveu a segunda fundação de São Paulo, mudando
as feições do antigo burgo de estudantes.
Além do tratamento da várzea, com novos jardins e espaços para deleite
das elites, João Theodoro iniciou os trabalhos para o novo sistema de
distribuição de água da cidade. Os serviços relativos ao abastecimento seriam
entregues a uma empresa privada, a Companhia Cantareira (CAMPOS, 2005).
Em 1887, quase dez anos depois das reformas de João Theodoro, o
engenheiro Luiz Bianchi Bertoldi, da Inspetoria de Obras Públicas da Província,
realiza um amplo estudo das águas dos rios Tamanduateí e Tietê, indicando
alguns encaminhamentos. O texto de Bertoldi, apresentado por OLIVEIRA e
FIGUEIRÔA (1984), já indicava que o saneamento das várzeas era uma tarefa quase
que impraticável; por isso, muito sutilmente sugeria o convívio com aqueles
terrenos alagadiços.
As soluções indicadas pelo engenheiro foram: 1) aumento das zonas
bosquivas (áreas de matas ou bosques), 2) transformação da região da Água
Branca em zona lacustre e 3) aproveitamento dos terrenos da várzea para a
agricultura de espécimes adequados aos terrenos inundáveis, já que os
melhoramentos nas áreas de várzea não eram possíveis e o saneamento total era
impraticável (BERTOLDI apud OLIVEIRA E FIGUEIRÔA, 1984).
As reflexões do engenheiro Bertoldi apontam para a necessidade de
criação de uma comissão especial para o estudo da questão das várzeas. Além
disso, recusam ações paliativas, por serem insuficientes, e também por terem
efeitos de pouca duração (BERTOLDI apud OLIVEIRA e FIGUEIRÔA, 1984). OLIVEIRA e
FIGUEIRÔA não indicam quais foram os desdobramentos do estudo realizado por
Bertoldi, que foi pouco referenciado em outros estudos sobre a questão das
várzeas nas décadas seguintes. Mas a questão do saneamento das várzeas ainda
era um debate presente na sociedade, depois do estudo do engenheiro. No início
da década seguinte, ele é retomado com novo vigor. É disto que me ocuparei na
seção seguinte.
O concurso da Câmara Municipal de São Paulo, o Plano Mursa e a
Comissão de Saneamento das Várzeas, 1889-1891
Ao final da década de 1880, o país atravessava momentos de agitação
política. Na província de São Paulo, a situação agravava-se pela ocorrência de
epidemias com efeitos devastadores em várias localidades, na capital e em
outras cidades.
O governo provincial trabalhava com os recursos de que dispunha para
conter o avanço das doenças, mas com pouco sucesso (RIBEIRO, 1993). Na capital,
o aumento da população e a expansão da cidade para além do triângulo central,
em direção às várzeas, preocupavam as autoridades públicas. E as várzeas,
principalmente a do Carmo, causavam desconforto em determinados segmentos da
sociedade paulistana. Eram comuns nos jornais notícias condenando a situação da
Várzea do Carmo.
Após vários clamores, em 1889 a Câmara Municipal de São Paulo organiza
concurso público para empresas interessadas no saneamento da Várzea do Carmo.
Neste período, a terceirização de tais serviços era prática comum, visto que
tanto os governos da Província como a Câmara dispunham de pouco pessoal para
empreendimento de tamanho vulto.
Foram apresentadas duas propostas: a de F. Pennaforte Mendes de Almeida
e J. Evaristo Alvez Cruz, e a de A. C. Miranda e Samuel Malfatti. O projeto
vencedor acabou sendo o de Miranda e Malfatti, mas logo após a revelação dos
vencedores, surgiram várias críticas. O principal opositor do plano de Miranda
e Malfatti foi o Correio Paulistano. Para este jornal, a proposta
apresentava irregularidades, pois faltava detalhamento das obras e de seus
respectivos orçamentos. Mas, acima de tudo, o Correio Paulistano não
concordava que um logradouro público fosse explorado por particulares.
Na esteira do debate levantado pelo jornal, o coronel Joaquim de Sousa
Mursa – que, logo após a proclamação da República, viria a ocupar o triunvirato
paulista [*2]
- também ofereceu sua
contribuição. O Plano Mursa foi publicado nas páginas do Correio Paulistano em
junho de 1890. Logo nas primeiras linhas o coronel indicava a necessidade de
sanear todas as várzeas da cidade, recomendando as seguintes obras:
·
construção de diques nas partes mais
baixas das margens dos rios;
·
construção de pequenos açudes que
modificariam o perfil longitudinal dos rios, fazendo assim com que a descida da
água fosse mais lenta (MURSA, 1890, p.2).
A proposta indicava para o Tamanduateí a construção de um longo canal,
que deveria possuir interligação com outros canais. Mursa estava consciente da
função que este rio desempenhava para o deslocamento de boa parte da população
paulistana. Assim, sua proposta era de saneamento, mas preservando a função de
transporte que aquelas águas cumpriam.
No desenrolar das críticas do Correio, o então governador do
Estado, Prudente de Moraes, intervém na questão, anulando o concurso da Câmara
e anunciando que o problema das várzeas e das enchentes seria de
responsabilidade do governo do Estado. Em relatório apresentado em 1890,
Prudente comunicava que havia intervindo por acreditar que o problema era de
competência do governo estadual, e que estava comissionando dois engenheiros
para apresentarem um plano definitivo para a várzea e para o problema das
enchentes (SÃO PAULO - Estado, 1890).
Os dois profissionais escolhidos pelo governador eram Antonio Francisco
de Paula Souza e Theodoro Sampaio, engenheiros que ocupavam funções importantes
dentro do setor de Obras Públicas do governo do Estado. Paula Souza dirigia a
Superintendência de Obras Públicas e Sampaio era engenheiro da Comissão
Geográfica e Geológica de São Paulo; ambos detinham aexpertise técnica
necessária para os trabalhos da comissão.
Os trabalhos de campo ficaram a cargo de Paula Souza, que com o auxílio
do pessoal da Comissão Geográfica e Geológica, realizaria as medidas e outros
trabalhos de campo para a execução dos projetos. Sampaio ficou responsável pelo
detalhamento e descrição das obras a serem executadas. Ambas as obras foram
planejadas de comum acordo entre os dois engenheiros.
O relatório foi entregue em 1891 ao governador do Estado, e estava
dividido em duas partes: 1) obras urgentes e indispensáveis e 2) obras de
aformoseamento e regularização. Como os autores do plano indicam, as primeiras
obras sugeridas deveriam ser realizadas para que a cidade ficasse livre dos
problemas das enchentes e da várzea inundável. O segundo bloco de obras
recomendadas deveria ser realizado em futuro próximo, e visava o embelezamento
dos locais que seriam atingidos pelas medidas saneadoras.
Para as obras urgentes, os engenheiros sugerem a canalização e
retificação dos rios, com a construção de diques marginais. Consequentemente, o
enxugamento da várzea seria conquistado com a construção de drenos e galerias.
A retificação dos rios traria um novo sistema viário para a cidade, com novas
vias de circulação que deveriam também ser arborizadas.
No "aformoseamento" os engenheiros indicam que a área saneada
da várzea deveria abrigar um parque público com museus, e também os prédios do
governo do Estado. O plano não se restringia às várzeas do Tamanduateí e Tietê,
sugerindo obras para o Vale do Anhangabaú. Pela sua abrangência ao abordar
questões de saneamento, circulação e embelezamento, este foi considerado por
determinados setores do governo estadual como um dos primeiros planos de
conjunto para a cidade de São Paulo.[*3]
Entregue ao governador em 1891, o primeiro desdobramento do relatório da
Comissão das Várzeas foi a criação da Comissão de Saneamento do Estado, para
realizar, não somente o saneamento da capital, mas de todas as cidades
paulistas que necessitassem de tais serviços, como Santos e Campinas. Nesta
época, estas e outras cidades paulistas padeciam sob os efeitos de uma das mais
violentas epidemias de febre amarela que já acometeram o estado. A Comissão de
Saneamento surgiu dentro de um caráter emergencial, com vistas a retomar o
controle do estado sanitário. Ao final da década de 1890, foi extinta, e parte
de seus trabalhos foi incorporada pela Secretaria Estadual dos Negócios da
Agricultura. [*4]
Na capital, entretanto, a comissão foi especialmente organizada para
solucionar o problema das várzeas. Uma outra equipe foi designada ao engenheiro
João Pereira Ferraz e os trabalhos se estenderam até o ano de 1914, quando
foram concluídos (CAMPOS, 2007).
A entrega do relatório da Comissão das Várzeas e a organização da
Comissão de Saneamento marcam um novo período, onde as questões do saneamento
estão presentes na pauta do governo. Afinal, as doenças ameaçavam a permanência
do Brasil no mercado mundial.
Considerações finais
Neste artigo, analisei um período da história de São Paulo em que se
discutiam ideias e propostas para a cidade, com a intenção de livrá-la de
problemas decorrentes de suas várzeas inundáveis e da cheia dos rios. Tais
propostas tinham como objetivo realizar alterações no ambiente urbano a fim de
torná-lo mais salubre.
O período analisado, que engloba principalmente as décadas finais do
século XIX, é marcado pela divulgação de várias propostas e estudos, mas com
ações muito pontuais no espaço, produzindo alterações de baixo impacto na
paisagem. Destaco que o saber técnico e científico do período em tela indicava
como necessárias alterações no curso dos rios e retificação de margens.
Das propostas e planos aqui discutidos, poucos foram executados de fato,
mas tinham como característica comum a indicação de correções e outras
alterações no terreno. O estudo de Bertoldi talvez fosse o único a trazer uma
nova abordagem para o problema das várzeas. O engenheiro propunha um mínimo de
intervenções, e a reserva do local para agricultura. O plano de Mursa indicava
intervenções, mas ressaltava a importância da manutenção da navegabilidade do
rio.
A partir da década de 1890 inaugura-se uma nova etapa: das ações
pontuais e propostas para as intervenções de fato. O surgimento da Comissão de Saneamento
das Várzeas - que resulta na criação da Comissão de Saneamento - é o evento que
marca esta nova etapa, caracterizada pelas intervenções no espaço. Estas
intervenções seriam levadas a cabo em várias cidades do interior paulista pela
Comissão de Saneamento, provocando alterações significativas na paisagem em
nome da salubridade urbana.
Referências
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- __________. Ferrovias
e Saneamento em São Paulo. O engenheiro Antonio Francisco de
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- LEME, M. C. S. “A
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e viver a construção da cidade. Canteiros e desenhos de pavimentação,
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Faculdade de Arquitetura e Urbanismo, Universidade de São Paulo. São Paulo.
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1880-1930. São Paulo: Editora da UNESP, 1993.
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F. Nem tudo era italiano: São Paulo e pobreza, 1890-1915. 1ª ed.
São Paulo: Anna Blume/ FAPESP, 1998, p. 195.
- SÃO PAULO -
Estado, Exposição apresentada ao Dr. Jorge Tibiriçá pelo Dr. Prudente
J. de Moraes Barros, 1º governador do estado de São Paulo ao passar-lhe a
administração no dia 18 de outubro de 1890. São Paulo: Tip. Vanorden &
Cia., 1890.
Jornal
- MURSA, Joaquim de
Sousa. Carta publicada com o título “Várzea do Carmo”. Correio
Paulistano, 4 de junho de 1890, p. 2.
[1]
Artigo retirado
da Revista Histórica, revista on line do Arquivo Público do Estado de São
Paulo.
[2] Professora colaboradora, Departamento de Política Científica e
Tecnológica do Instituto de Geociências da Unicamp.
NA BEIRA DOS RIOS DE SÃO PAULO, GENTE, BICHOS E
PLANTAS, 1890-1940[1]
Janes Jorge[2]
Quem fosse pescar nos rios de São Paulo no início do século passado
provavelmente não deixaria de recolher os frutos que encontrasse no
caminho, fossem eles nativos ou vindos de outras terras. Os pés de fruta se
espalhavam pelo terreno, espontaneamente ou por iniciativa de moradores. De
fato, muitas pessoas iam para a beira dos rios e córregos especialmente para
procurar gabirobas, amoras, pitangas, bananas do brejo, morangos do mato, a
fruta do cambuí, joás, sapotis e também os ingás, que tem forma de vagem
e são adocicados (SÃO PAULO (Estado), 2002, p. 59, 61; PENTEADO, 1962, p. 162).
Além de pássaros e outros animais que procuram suas frutas, os ingazeiros, que
dispersam suas sementes pelas águas dos rios, tem flores melíferas que atraem
abelhas. E, além de peixes e frutas, muito mais podia ser encontrado nos rios
paulistanos e suas várzeas. Pássaros dos mais variados tipos e tamanhos faziam
da beira-rio um local repleto de pios e cantos, especialmente pelas manhãs.
Na São Paulo do início do século XX, com cerca de 240 mil habitantes – e
crescendo de modo assustador, na visão de alguns contemporâneos – era comum que
se buscasse na beira-rio a comida, ou as iguarias, que faltavam em casa. A
capital paulista era uma cidade de pobres, em sua maioria de origem imigrante.
Estes últimos compartilhavam com os nacionais um cotidiano de muito trabalho e
dificuldades (PINTO, 1994, p. 35, 38, 50; DEAN, p.163-164). Foi nas várzeas e
terras baixas, em meio a fábricas e ferrovias, que grande parte das classes
populares de São Paulo foi morar. Uma outra parte foi alocada em
loteamentos distantes. Em ambos os casos, foram morar em terras de menor valor
no mercado imobiliário, com infraestrutura mínima. Na verdade, como as áreas
urbanizadas da cidade se mesclavam não só com rios e córregos, mas também com
lagoas, várzeas, campos, matas, zonas agrícolas e pastoris ou gigantescos
terrenos baldios e barrancos, eram comuns a pesca, a caça, a coleta de frutos e
de plantas alimentares ou medicinais, e a cata de lenha.
Animais, ervas e outros elementos da natureza eram procurados em busca
de propriedades mágicas e medicinais, pois os moradores da cidade continuavam a
recorrer às “boticas do sertão” dos mamelucos (HOLLANDA, 1994, p. 74),
que se renovavam através dos tempos. Em meados do século 19,
mulheres pobres que praticavam a medicina caseira, do Tietê e afluentes
costumavam retirar ‘amuletos, e mesinhas contra ramos de ar, estupor,
mau-olhado, envenenamentos, mordeduras de animais`, que curavam com anhumas,
esterco de vaca, de gambás, misturados com fumo, camina, pimenta da terra, suco
de limão azedo. (DIAS, 1995, p. 241-242)
Já para fazer sangrias, utilizavam-se “em lugar de lancetas, bicos de
aves, ou dentes de quati ou de cotia. Em fins do século, quitandas e boticas
vendiam folhas secas, raízes, casca de paus, e frutas com que se tratavam “ares
pestilentos, sezões e febres” (DIAS, 1995, p.241-242).
Um inventário dos produtos vendidos pelos ervanários de São Paulo no
Mercado Velho e na feira do Largo do Arouche, no ano de 1920 – e no qual se
evidencia a presença de costumes e crenças religiosas afro-brasileiras –
listava enorme quantidade de “ervas e cascas medicinais, amuletos e fetiches,
bem como outros produtos vegetais, animais e mesmo minerais” que serviriam para
“curar ou prevenir contra os males físicos e morais”. (HOEHNE, F. C.,
1920) Uma parte desses materiais vinha de fora, mas outra, ao que tudo indica,
era encontrada na cidade e seus arredores, muitas vezes em seus rios e várzeas.
As folhas, cascas e raízes muitas vezes eram obtidas de espécies vegetais
relativamente fáceis de encontrar, como era o caso da goiabeira, cujas folhas
combatiam a diarreia. Nesse caso, até o incrédulo botânico do Serviço
Sanitário que realizara o inventário testemunhara a eficácia do remédio. Os
produtos de origem animal não eram tão abundantes, mas além de casca de lagarto
e tatu, dentes de jacaré, unhas de tamanduá e onça e chifre de veado, podia-se
comprar, em pequenos vidros ou garrafas, a banha de quati, de capivara, de
gambá, galinha, tamanduá, tatu, anta e das cobras jiboia, sucuri, jararacuçu,
cascavel, coral e urutu. As banhas serviam para tratar o reumatismo, mas a do
quati era prescrita igualmente no combate à calvície (HOEHNE, 1920, p. 9, 118,
214-218).
Nem todos caçavam para uso mágico ou medicinal. Ao lado da pesca, “a
caça de pequenos animais em matas próximas” era um divertimento apreciado por
muitos moradores de bairros como a Vila Leopoldina, contígua à Lapa e ao rio
Tietê (LOBO JR., 1986). Alguns bandos de caçadores eram formados por homens
experimentados na atividade. Sempre que podiam posar para fotografias
registravam os resultados de suas incursões, posando lado a lado, e exibindo as
espingardas, os cães de caça e as presas mortas. Por outro lado, havia grupos
formados apenas por moleques, que saíam para pegar rãs alta noite nos barrancos
de córregos. No dia claro, caçavam nas lagoas existentes nas margens do Tietê,
para os lados do Canindé e Vila Maria, matando frangos d’água e outras aves que
depois eram consumidas avidamente. Ou não. Zelia Gattai conta que seus irmãos,
certa vez, sem o consentimento dos pais,
sumiram para os lados das Águas Férreas, lugar deserto, perigoso –
transformado mais tarde (...) no elegante bairro do Pacaembu. As atrações
desses ermos eram a caça e uma fonte de água cristalina que dava o nome ao
lugar. Formava-se em torno dela um pequeno lago onde os bandos de moleques
costumavam banhar-se nus.
Ao retornarem para casa, as crianças traziam uma coruja morta, com a
cabeça esmagada, mas foram censurados pelos pais pela crueldade contra a ave
indefesa (GATTAI, 1979, pp. 112-113).
As capivaras eram visadas pelos caçadores. Ficavam em pequenos grupos,
pastando nas beiradas dos rios ou mesmo dentro d’água, pois se alimentam
igualmente de plantas aquáticas flutuantes. Exímias nadadoras,
quando perseguidas submergiam nos rios, mas sua localização era denunciada
pelas pequeninas bolhas de ar que expeliam do fundo d’água, ocultas muitas
vezes por tranqueiras flutuantes, mas indisfarçáveis para o caçador ladino. Em
meados do século 20, capivaras e veados ainda eram caçados para os lados do
córrego Aricanduva, afluente da margem esquerda do Tietê na altura da Penha. No
Rio Pinheiros, próximo à Fazenda Morumbi, depois de matar uma grande capivara e
colocá-la em seu barco, um caçador teve de aportar rapidamente e “sapecar o
fundo e os bordos da canoa com capim seco” tantos foram os carrapatos que se
desprenderam do corpo do animal morto. Nos ermos às margens do Pinheiros, além
das capivaras, encontravam-se jaguatiricas; e no seu leito sinuoso, havia
bandos de marrecas, ratões-do-banhado e aves pernaltas (MAGALHÃES, 1937, p.
244; UM CONSELHO, 1929, p.24; SCHIMIDT, 1954, p. 25; ELES JURAM QUE PESCARAM NO
PINHEIROS, 2000).
Concorria para a popularidade das caçadas – além do aspecto utilitário
do consumo da carne, que se constituía em motivação decisiva para as famílias
carentes e numerosas, e mesmo para caçadores que apreciavam o sabor da caça,
quando comparada às carnes dos animais de criação –, a nostalgia e o costume,
já que inúmeros moradores da cidade provinham de pequenas localidades onde a
caça era praticada ordinariamente, em áreas rurais do Brasil e da Europa. Por
outro lado, em boa parte das moradias paulistanas, mesmo as humildes, as
pessoas criavam porcos, carneiros, e mais usualmente patos e galinhas. Assim
homens e mulheres nascidos na capital paulista acostumavam-se, desde cedo, à
matança de animais e ao seu preparo para o consumo.
A morte dos porcos, impressionante pelos gritos do animal, era um acontecimento,
e ajuntava dezenas de pessoas, muitas das quais esperando conseguir alguma
carne ou banha. Com o sangue e miúdos do porco se preparava o sarrabulho. A
degola das galinhas e patos podia ser feita por crianças. As aves podiam ser
mortas quebrando-se o pescoço ou abrindo um talho nele à faca, ou então na
cabeça, de forma a provocar uma sangria. Nesses dois últimos casos, o sangue do
animal podia ser recolhido numa vasilha, onde rapidamente coagulava, sendo
então fervido, e depois devorado em pequenos pedaços. Mesmo o abate de gado
bovino, ovino e caprino não era estranho aos moradores dos bairros mais
afastados do centro da cidade, como a Vila Guilherme ou Itaquera – já que
sítios, chácaras e vacarias se mesclavam aos loteamentos residenciais.
Às vezes, um boi bravo atacava crianças ou mesmo adultos, provocando
ferimentos graves, que podiam até levar à morte. Por outro lado, acontecia dos
animais de criação que viviam parcialmente soltos, tornarem-se, eles próprios,
alvo de “caçadores”. Os barqueiros lembrados por Jacob Penteado, para obter
alguma “caça”, dependiam da habilidade do cachorro mestiço que levavam consigo.
Saindo do barco, ele atacava as galinhas que encontrasse nas margens ciscando –
o que causava encrenca, se o proprietário da ave estivesse por perto.
Jacob Penteado sabia disso tudo porque, ainda criança, viajava pelo
Tietê com os barqueiros italianos Nanetto, Alfredo e Bépi. Este último era
sublocatário de um cômodo na casa de Jacó, onde morava com a esposa, e amigo da
família de Jacob - a qual conseguia, assim, diminuir os custos com
moradia.
O ponto de partida era o Tietê, no Belenzinho, onde terminava a rua
Catumbi. A jornada começava cedo, ao alvorecer, às cinco ou seis horas da
manhã; mas o trabalho não, pois a barcaça fora carregada na véspera. Avançando
lentamente rio abaixo, por volta das 11 horas chegavam à Ponte Grande pelo
leito sinuoso do Tietê. Ali descarregavam e vendiam a mercadoria transportada a
um representante de uma firma compradora (PENTEADO, 1962, p. 77).
No barco, além do almoço, preparado no fogareiro rústico que
mantinham a bordo, os barqueiros levavam café e cachaça. No caminho de volta
para casa, felizes pelo trabalho cumprido, eles “entoavam umas lindas canções
de sua terra natal, a Toscana, e iam dirigindo piadas às pessoas conhecidas
que, nas barrancas, aguardavam a passagem da barca”. Quantos barqueiros não
começaram a aprender seu ofício, e a conhecer os perigos e possibilidades dos
rios e suas beiradas, nessas aventuras de criança?
Assim, matar animais selvagens por medo ou para se defender, em busca de
propriedades mágicas e medicinais ou simplesmente para comer ou comerciar, foi
prática constante dos moradores de São Paulo ao longo dos séculos. Mas, à
medida que o povoamento crescia, tal matança multiplicou-se e contribuiu para a
diminuição do número de algumas espécies, ou mesmo seu desaparecimento. Tal
processo se intensificou a partir de fins do século XIX com a explosão
demográfica e o avanço da urbanização, e com as atividades correlatas que elas
provocavam no território paulistano e seus arredores. Quando não
fossem mortos, os animais tinham que competir cada vez mais por espaço e
recursos com a nova sociedade que surgia.
Em 1892, poucos anos depois de proclamada a República, entrou em vigor
uma legislação municipal que tratava da caça, pesca e navegação. Proibia a
entrada em terrenos alheios, abertos ou fechados, para o exercício da caça sem
consentimento dos donos; cães soltos na rua; a caça de perdizes e codornas; e a
destruição de seus ninhos entre 1º de setembro e 1º de março. Estipulava ainda
que a caça nos “lugares públicos” ou servidões municipais só poderia ocorrer a
500 metros de distancia dos povoados, sendo que para isso seria preciso tirar
licença de caçador. Quanto à pesca, era permitida livremente no rio “Tietê e
outros do município”, mas as redes deveriam ter o tamanho mínimo de 41
milímetros em suas malhas. Aos pescadores não era permitido ainda “abicar suas
canoas ou embarcações nas margens, e entrar nos terrenos particulares, fazendo
nele estragos ou danos”. O capítulo referente à navegação, por sua vez, proibia
“o emprego da dinamite, raiz de timbó e outras drogas venenosas para a pescaria
e matança de peixes”.
Contudo, essa legislação não foi capaz de impor limites à caça e à pesca
na cidade e arredores. Dez anos após sua promulgação, Hermnn Von Ihering,
diretor do Museu Paulista – na época, principalmente um museu de História
Natural – afirmava que apesar da legislação “muitas pessoas se dão à caça
por todo o ano no município da Capital”. E ainda ressaltava que “os caçadores
muitas vezes não respeitam os terrenos cercados, entrando sem licença,
resistindo até, às vezes, às intimações dos respectivos donos”. Os
pássaros eram dizimados (VON IHERING, 1902, vol. 5, pp. 240-244). Mas a matança
excessiva não era a única responsável pelo extermínio da fauna, pois a
destruição de seu habitat era igualmente devastadora. No caso das aves,
Von Ihering observava que o “aumento da população e de suas indústrias e
vias de comunicação, constantes queimas dos campos e outras circunstâncias
diminuem as condições de existência para os pássaros, e as derrubadas das matas
e capoeiras privam-nos das localidades apropriadas à sua procriação”.
Em 1913, numa colina contígua a um depósito de lixo, na margem direita
do Anhembi, foi aberto o loteamento Vila Tietê, rebatizado pelo povo como Casa
Verde. As várzeas recebiam – além do lixo depositado pela prefeitura e
por particulares ou levado pelas chuvas –, cargas de esgoto, quando próximas a
locais mais densamente ocupados. A travessia pela várzea “mal cheirosa”, onde o
lixo era disputado “por milhares de urubus esvoaçantes” afastava compradores de
lotes na Vila Tietê, o que contribuiu para que o local ficasse praticamente
desabitado, a não ser por uns “pobres chacareiros recém-vindos do velho
Portugal” (LEITE, 1940, pp. 113-116). Os depósitos de lixo e a degradação das
várzeas eram evidências suplementares da força destrutiva da urbanização
paulistana. Na verdade, a cidade de São Paulo, desde os primeiros tempos da
colonização, provocou uma sucessão contínua de perturbações no mundo natural em
que se desenvolveu. Esses sucessivos reordenamentos ecológicos da região
beneficiavam algumas espécies e prejudicavam outras – o que, entretanto, nem
sempre causava incômodo aos moradores da cidade.
Os sapos pareciam estar no grupo das espécies beneficiadas, pois havia
um número enorme deles na São Paulo do século 19. O que se devia,
provavelmente, não só à abundância de comida e de rios, córregos, lagoas e
charcos onde tais animais tem seu habitat; mas também, quem sabe, à diminuição
de seus predadores naturais. O “beco do Sapo” era chamado assim
porque sapo, ali, era cousa comum. De todos os tamanhos, qualidades e
... sons, na orquestração noturna e diuturna, a que se habituaram os
antigos moradores, à míngua de outros afazeres, encarapitados na Ponte do Acu.
Conta-se que desse hábito dos paulistas, de escutarem o coaxar dos sapos na
Várzea do Anhangabaú (onde hoje está a Praça do Correio e o monumento a Verdi)
e de apostarem, com olho comprido e ouvido afiado, sobre as várias tonalidades
dos maviosos cantos, surgiu a expressão popular, ainda em voga – sapo, saparia
– para designar a torcida muda, incomodativa, de espectadores de jogo. Daí
também a expressão nativa ‘sapo de fora não chia’ (SEVCENKO, 2004, p. 320).
E se havia sapos, havia muitos, muitos insetos, como os pernilongos que
se tornavam verdadeira praga em algumas épocas.
O impacto da urbanização nas várzeas paulistanas era mortal para
espécies como a batuíra, que tinha nos brejos seu habitat. Em 23 de abril de
1936, Américo Tesarolo, caçador licenciado, levou ao Serviço de Caça e Pesca de
São Paulo uma batuíra que matara em novembro de 1935 na várzea do Bom Retiro –
bairro populoso, na margem esquerda do Tietê, onde muitas ruas terminavam na
várzea. A batuíra morta trazia em uma de suas das pernas um anel marcado
pela Biological Survey, entidade norte-americana que há tempos fichava
exemplares dessa ave migratória nos EUA.
Mesmo assim, o território paulistano continuava a abrigar muitos
animais, pois algumas espécies se adaptavam ao novo ambiente que surgia e
outras encontravam refúgios, ainda que temporários, nas várzeas, nos ermos, nas
matas, nas poucas áreas naturais protegidas. Humanos, bichos e plantas continuariam
a interagir. E essa interação podia gerar cenas inesperadas e magníficas como
as presenciadas por Rodolpho Von Ihering:
Voltando de uma viagem à Europa, e enquanto o último trem da “inglesa”
nos transportava de Santos a São Paulo, contávamos a um amigo quais as cenas e
as belezas que mais nos impressionaram no velho mundo. Já era noite fechada
quando atravessamos a extensa várzea entre Pilar e São Bernardo. Vimos então
aquela planície rebrilhar à luz de miríades de vaga-lumes e tal era a magnificência
do espetáculo, que a comparação com um céu estrelado ainda lhe deprimia a
beleza. Certamente não havia um palmo quadrado em toda aquela várzea imensa, em
que não fulgisse pelo menos uma dessas vivas estrelas errantes. Correndo célere
o trem vencia quilômetros e o espetáculo maravilhoso não diminuía em sua beleza
e intensidade. (VON IHERING, R., 1946).
Referências
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Jornais
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PESCARAM NO PINHEIROS, Jornal da Tarde (Internet), 20/2/2000.
- UM CONSELHO, O
Estado de S. Paulo, 24/2/1929, p. 24.
[1] Artigo retirado da
Revista Histórica, revista on line do Arquivo Público do Estado de São Paulo.
[2]
Professor do curso de graduação e do programa de pós-graduação
do Departamento de História da Universidade Federal de São Paulo. É autor do
livro Tietê, o rio que a cidade perdeu e, com outros autores, de Paulicéia
Afro: lugares, histórias e pessoas.